domingo, 8 de abril de 2012

No Hospital São Francisco Xavier, não.

Escrevi este texto para a minha filha.
Em tom de conversa familiar, para que ela viesse mais tarde a saber do seu nascimento e também de como se dava à luz, nalguns sítios (como o Hospital São Francisco Xavier), no ano 2000.

As notícias do encerramento da Maternidade Alfredo da Costa e da dispersão das suas competentes equipas para esse e para um outro hospital fazem-me partilhar esta experiência convosco. (Público)

No Hospital São Francisco Xavier, não!

«Fui a uma ultima consulta com o obstetra, chefe do serviço de obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier, local onde irias nascer. Uma semana antes do dia previsto para o teu nascimento, entrei sozinha, porque como ele ia fazer “o toque”, o teu pai achou que seria constrangedor assistir. Eu também pensava assim, até o Dr. Ricardo Jorge nos dizer, no final da consulta, que tinha feito um “truque” e que se tudo corresse bem, tu nascerias naquele dia ou no seguinte (ou talvez só para a semana). O médico explicou-nos que tinha “descolado a placenta” ou seja, provocou o parto.

Não estivesse eu enebriada com plácidos sentimentos maternais (a gravidez correu-me muito bem), matava-o logo ali.

Saí furiosa e a rezar a todos os anjinhos para que o “truque” não tivesse funcionado. Não estava na agenda, nem a mala estava preparada.

Fomos ter com o teu padrinho (isso sim, estava agendado), para almoçarmos com ele e irmos depois ver uma impressora.

No restaurante senti algumas contracções, em nada diferentes das que já tinha sentido em final de gravidez, mas desta, com alguma regularidade. Comecei a cronometrar (direi até ao fim dos meus dias, “façam aulas de preparação para o parto”).

Quando chegámos ao local para a demonstração da impressora, ele disse para o técnico, em tom de brincadeira: Vai ter a criança hoje ou amanhã. O homem ficou com algum receio que eu resolvesse parir ali mesmo.

As contracções, entretanto, já tinham intervalos de 15 minutos. Sem lhes dizer nada, enquanto examinavam a qualidade e a rapidez da impressão em fotografia, fiz uma lista das coisas que me fariam falta na maternidade. Quando saímos, aproveitei um momento a sós com o teu pai e disse-lhe que era melhor irmos andando para casa. Desde esse instante até à altura em que deixei de o ver, no Hospital São Francisco Xavier, ele manteve a calma. Isso foi muito importante para que eu controlasse o trabalho de parto e pudesse, depois, reagir de forma acertada ao que aconteceu.

O teu padrinho deixou-nos em casa e foi ter com a tua avó a Sintra. Ao almoço, eu tinha estado a falar com ela ao telefone mas não quis alarmá-la, disse-lhe apenas para me telefonar à noite.

Já em casa, as contracções continuavam regulares e indolores, com intervalos de 10 minutos. Começámos a preparar a mala e telefonámos ao obstetra. Disse-me que se não sentia dores é porque não seria desta vez. Passados uns minutos, as dores começaram e telefonámos à tua avó. Ela ficou nervosa, segundo o teu pai, e insistiu para que fossemos rapidamente para o hospital (estava convencida de que irias nascer depressa porque quando eu nasci, quase nem teve tempo de se deitar na marquesa). Enquanto me vestia, arranjando forças nos intervalos das contracções, as águas rebentaram. Chamámos um taxi e telefonamos novamente á minha mãe, que desta vez ficou assustada e disse que ia ter connosco ao hospital.

O táxi parou à porta das urgências e saí no intervalo de uma contracção (ainda olhei para trás para ver se tinha sujado o banco). Tive tempo de chegar à portaria e apoiar-me no Paulo (bem-ditas aulas) para melhor aguentar mais uma contracção. Enquanto me escorria líquido pelas pernas abaixo a enfermeira queria que eu preenchesse uma ficha e insistia, desvairada, que eu não tinha que estar a despedir-me do marido porque ele podia ir comigo para cima.

Felizmente uma auxiliar mais atenta, trouxe-me uma cadeira de rodas e eu, deixando o Paulo a preencher a papelada, subi ao 3º andar. Descansei. “Agora é só fazer a respiração”.

Na recepção da maternidade, sentei-me num cadeirão e esperei pelo Paulo e que alguém me viesse buscar. A frequência das contracções estava a deixar-me inquieta relativamente ao teu estado de saúde. E de apoio hospitalar, nada.

Em frente, ao fundo da sala, havia uma porta com vidro e os parentes que esperavam outros partos iam espreitando. Quando eu já desesperava, apareceu o rosto da minha mãe, do teu padrinho e do meu irmão. Pedi que telefonassem ao meu dispendioso médico. O Paulo apareceu e lá me levaram numa maca, para observação. Largaram-me numa sala vazia, correrem uma cortina à minha volta e desapareceram...

Continuei a concentrar-me na respiração (que já não faço a mínima ideia de como é) e depois de algum tempo, ouvi passos do lado de fora da cortina. Perguntei porque não me atendiam, “Já estou naquele momento de fazer força!” e ela, “não faça força “ e saiu. Durante momentos que me pareceram horas, chamei, gritei, chorei e nada.

A aprendizagem que tinha tido sobre o parto, dizia-me que a dor que sentia, era a tua cabeça que já estava a empurrar, olhei para baixo e vi a cama cheia de sangue, não podia ficar à espera. Talvez o teu pai me ouvisse, alguém teria que me ouvir. No intervalo de um das contracções, respirei fundo, meti os dedos à boca e assobiei o mais que pude, deixei passar outra contracção e voltei a assobiar. As enfermeiras entraram na sala indignadas com o disparate "Quem é que est´a assobiar?". Gemer, chorar até gritar, são coisas próprias para mulheres parideiras mas assobiar . . . disse-lhes que estavas a nascer.

Não sei se pela pressão dos parentes lá fora, se pelo assobio, ou porque a senhora se assustou com o sangue, alguém me veio pegar na mão, acariciando-me o pulso e isso acalmou-me. “Já tenho a vossa atenção”. Fui “preparada” por uma enfermeira bruta como as portas e levada para a sala de parto.

Eu estava numa exaltação tal que, apoiada nos cotovelos, seguia de perto tudo o que a enfermeira fazia. E não me calava. “O que é que está a fazer agora?”, a parteira pediu para eu me calar mas quando eu lhe perguntei se preferia que gritasse, reconsiderou. Todo o processo, desagradável de descrever, foi para mim uma experiência única (e repito minha filha, única). Finalmente, o momento em que já se podiam fazer os exercícios praticados e A Força. A enfermeira (Fernanda Braga), tua parteira, disse antes da terceira ronda, “se aguentar tudo seguido, ela nasce já”. E nasceste.

Pousaram-te em cima do meu ventre e eu apenas tive tempo para te acariciar o pé esquerdo. Vinhas acinzentada e adormecida mas muito bonitinha. Levaram-te para fazerem testes (o teste APEGAR foi inicialmente 5 e passados cinco minutos, 8) e trataram-me, deixando-me depois estacionada numa fila de macas, no corredor. Depois de meia hora a tremer descontroladamente (o parto foi sem epidural, contrariamente à vontade do obstetra que não apareceu, mas como eu o queria fazer), voltei ao normal. Enquanto ia observando tudo à minha volta, pedia às enfermeiras e auxiliares que passavam para te trazerem.

Passada uma hora no corredor, ouvi uma bebé a chorar em plenos pulmões. Comentei com a parturiente da maca seguinte que aquela devia ser a minha. Mal sabia eu que calma me saíras. Dois dias depois, comentava em tom de brincadeira com os teu primos, que me tinham trazido uma bebé sem pilhas, que as outras mães da sala de recobro, invejavam o descanso que me davas. A enfermeira informou-nos que a criança que berrava era de outra e que a minha tinha ferrado a dormir. Passados mais uns momentos trouxeram-me bolachas e um copo de leite (iogurte?), tu vieste depois.

Já comentei com o teu pai o facto de não me lembrar, de todo, do momento em que te trouxeram e em que eu te peguei e te dei de mamar (agora tenho um vislumbre mas não sei se não fui eu que o criei). Ele acha que é porque a emoção foi muito grande e eu também acho que sim. Lembro-me de mais tarde pedir a uma auxiliar que passava para dizer ao teu pai que já estavas a mamar (que estava tudo bem). Estava preocupada, porque ele queria acompanhar o parto e não o deixaram fazer (havia uma outra parideira na sala). Devia estar muito ansioso.

Por fim, digo-te que, apesar de já ter tido dores de dentes bem piores, a experiência da maternidade, foi para mim, nove meses em estado de graça. O parto, naquele Hospital, é para esquecer.»